Julho 21, 2021
Por Marina Salles
Você já deve ter visto esse rosto. Ou, se não se lembra dele, já viu essa escultura — das Olimpíadas Rio 2016. Fred Gelli é um dos criadores dela, que nasceu das mãos dos vários colaboradores da Tátil, consultoria de design e branding que ele mantém há 32 anos, praticamente desde quando saiu da faculdade.
Fred Gelli com uma das principais criações da Tátil Design, o símbolo das Olimpíadas Rio 2016 (Foto: Tátil Design)
Com mais de 100 prêmios nacionais e internacionais no currículo, o designer nascido em Petrópolis (RJ) é conhecido pela sua paixão pela biomimética, área de estudo que olha para a natureza buscando nas suas estratégias e soluções formas criativas de resolver problemas de outros campos do conhecimento.
Daí o símbolo das Olimpíadas Rio 2016 fazer referência aos relevos do Rio de Janeiro ou a nova consultoria do artista se chamar 12358, remetendo à sequência do matemático italiano Leonardo Fibonacci. Formada sempre pela soma dos números anteriores, essa sequência é chamada também de razão de ouro e é a régua do desenho de conchas, da presa de marfim do elefante e das espirais que preenchem o miolo do girassol.
Movido a biomimética, Gelli é o convidado do AgTech Garage, ao lado do sócio na consultoria 12358 Marketing de Valor Compartilhado, Lourenço Bustani, da Mandalah, para esquentar os motores para o AgTech Meeting.
No próximo dia 4 de agosto às 14 horas, os dois entram em cena para falar de inovação e de como as organizações do agronegócio podem gerar valor para todos os envolvidos no seu ecossistema, em evento virtual e gratuito, o Warm Up AgTech Meeting 2021.
Em entrevista ao AgTech Garage News, Fred Gelli, que também é professor de biomimética na PUC-Rio há 20 anos, traz detalhes sobre o conceito para os mais curiosos (que, com certeza, já garantiram a vaga para o evento. Se você ainda não fez isso... corra!) ao mesmo tempo em que discute o desafio criativo por trás da reinvenção das relações entre a natureza, as pessoas e as corporações.
Fred Gelli: A biomimética é essa ciência que acredita que você pode buscar inspirações na natureza para trazer para as áreas do conhecimento humano e que tem aplicações da engenharia à robótica, da arquitetura ao design e, porque não, também no agronegócio.
É dizer que, se vou desenhar um barco, eu vou olhar antes para o shape dos golfinhos e dos peixes, que estão há milhões de anos encontrando a melhor geometria para navegar no mar. Ao mesmo tempo, se eu quiser pensar em uma embalagem sustentável, como a gente faz com a Natura, eu posso olhar para os sistemas que a natureza desenvolveu para conter e transportar líquidos.
E tem uma outra dimensão da biomimética que eu gosto muito também, que é olhar para a natureza como fonte de inspiração estratégica. Nesse caso, o objetivo está além da busca pela solução formal, relacionada à mecânica de um barco, por exemplo. Estou falando de tentar capturar a inteligência criativa da natureza, entender como ela opera e identificar seu princípio criativo.
Embalagem da Natura imita formato de uma gota de água (Foto: Divulgação)
Fred Gelli: A natureza é obcecada, por exemplo, por economia e está o tempo todo gastando a menor quantidade de energia e de matéria-prima possível para se manter rodando. A natureza opera também sempre na lógica da interdependência, ou seja, não existe uma solução que seja pontual, que não impacte o todo. E tem outros princípios como o da circularidade. Não existe lixo, não existe resíduo na natureza. Todo resíduo é sinônimo de recurso.
Como você pode ver, eu sou apaixonado por essa ciência, a biomimética, que foi formalizada na década de 1950, mas que sempre foi nossa fonte de inspiração primária. O ser humano sempre mimetizou a natureza para estruturar e desenhar o seu modo de viver.
Fred Gelli: Os organismos evoluem na natureza basicamente a partir dos desafios que o meio lhes apresenta. Ou seja, nenhum organismo evolui por antecipação. Um pássaro não fica pensando... “Daqui a 200 anos a densidade do ar vai ser diferente, então é melhor eu mudar a minha asa porque a quinta geração não vai conseguir voar assim”. Não, não existe isso! Na natureza, todo organismo evolui a partir de um desafio do meio.
A questão é que nós, seres humanos, somos o único bicho que consegue antecipar o futuro. Isso explica até um pouco da tensão que existe no nosso próprio processo evolutivo — porque, por um lado, a gente tem uma parte do cérebro que é reptiliana, conservadora, e, de outro, uma parte que olha mais à frente e que imagina como mudar a maneira como sempre fizemos as coisas.
Eu digo que a natureza é conservadora porque ela deixa os organismos expostos, pelo maior tempo possível, a situações de conforto. Se você está vivo, se reproduzindo, se alimentando, dormindo... A mensagem que ela passa é: fique onde você está!
Porque, afinal, todo processo de mudança gera gasto de energia, que é uma coisa que a natureza não gosta e que gera risco para o indivíduo. Por isso, mesmo não estando feliz, a gente fica num emprego ou num casamento mais do que deveria ou teima em arrastar âncoras. Pensando no mundo dos negócios, grandes empresas quebraram porque hesitaram em mudar seu produto ou serviço e carregaram âncoras. Por outro lado, o córtex pré frontal nos dá a capacidade de imaginar e repensar o futuro, o que nenhum outro animal consegue fazer.
Apesar disso, nossa capacidade de entendimento da realidade é progressiva e a gente está entendendo, aos poucos, essa intrincada lógica de relações que existem na natureza, o que explica uma boa parte do impacto que a gente gerou no planeta por desconhecimento. O complicado é quando você entende e não toma uma atitude. Isso lá na frente vai afetar nossos negócios ou o dos nossos filhos. É preciso pensar sobre isso, porque pode até demorar mais 30 anos, mas a próxima geração já vai estar comprometida.
Fred Gelli: O agronegócio é um mundo tão importante para o Brasil, o país tem vocação para se desenvolver no setor, e eu vejo que ele vai ter que evoluir nessa dimensão que considera a interdependência como algo que é determinante para o sucesso da sua própria indústria, do seu próprio negócio.
Na nossa consultoria, a Tátil, trabalhamos, por exemplo, para a Fazenda da Toca, do Pedro Paulo Diniz, que tem uma abordagem de agrofloresta e usa a sombra do pé de tangerina para gerar sombra para o tomate. A lógica que a natureza opera, com um organismo gerando valor para o outro.
Na Fazenda da Toca, o sistema de produção mimetiza a vida livre na natureza (Foto: Divulgação)
Mas o que estamos vendo no mundo vai na contramão disso. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês), o mundo tem mais de 50 mil plantas comestíveis, mas apenas três delas — arroz, milho e trigo — são responsáveis por atender 70% da demanda por alimentação do planeta. Isso é muito doido, porque a redução da diversidade que não combina com o futuro, na minha opinião.
Eu costumo brincar que eu torço para que o futuro não seja verde, porque um futuro verde seria um futuro monotonal e a natureza gosta de policromia. A natureza gosta de diversidade e, quanto mais diverso um ecossistema, mais rico, mais resiliente ele é.
É só parar para pensar que o passado tínhamos, não sei, 40 tipos de abóboras diferentes? Hoje, a gente cultiva e se alimenta de umas três? No Peru e no México você tem dezenas de tipos de milho diferentes, e porque isso não se dissemina? Eu entendo que a gente tem que alimentar cada vez mais pessoas, mas há também um desafio criativo aí.
Fred Gelli: No agronegócio, eu enxergo dois vetores caminhando em direção a um futuro desejável: das companhias que estão dando uma resposta às demandas que o meio ambiente expressa e daquelas que estão respondendo aos consumidores.
A pressão do meio mobiliza o processo evolutivo e é a natureza dizendo: “O bicho vai pegar”. Ao mesmo tempo, a pressão das pessoas e das instituições é crescente, demandando novos padrões mais sustentáveis.
Falando do agronegócio, esses dias eu tive uma reunião com o CEO para América Latina de uma grande empresa de alimentos que me deu um exemplo prático de como esse novo nível de consciência já está transformando os negócios. Ele foi convidado a trabalhar em uma empresa que estava perdendo espaço no mercado por adotar sempre a política do menor preço. Nos últimos anos, segundo ele me contou, essa indústria passou a procurar fornecedores cada vez mais longe da sua fábrica, porque os mais próximos, que eram pequenos produtores, cobravam mais caro pela mercadoria. Mas foi tão longe, tão longe, que começou a receber produtos já comprometidos na etapa de transporte.
A principal tarefa desse CEO hoje é mudar o jeito como essa indústria opera e isso é genial, porque demonstra que não há incompatibilidade entre negócios que performam bem e os que respeitam as novas demandas do mercado.
Fred Gelli: Foi-se o tempo em que uma empresa podia ter como missão, simplesmente, gerar lucro para o acionista. Ela precisa gerar lucro para o acionista sim, porque isso é fundamental para a sustentabilidade do negócio, mas ela precisa gerar valor para todo o ecossistema do qual ela faz parte. Para poder garantir a sua própria relevância, o que não tem a ver com bom-mocismo, mas com sobrevivência.
Essa é a nossa visão em relação ao papel das marcas e a gente acredita que elas só conseguirão fazer isso, como player competitivo, do seu lugar de potência e com um conjunto de movimentos de impacto. Essa visão deve se refletir nos produtos e serviços que ela oferece, na comunicação que ela faz, na cultura que desenvolve entre seus colaboradores etc.
Eu volto para a história de que o futuro não seja verde... eu acredito que o futuro será multicolor. Então, ao invés de a gente ficar imaginando que todas as marcas serão verdes (fica todo mundo tentando imitar a Natura, Patagonia, The Body Shop, que desenvolveram um pensamento verde), cada marca vai ter que encontrar sua cor para construir esse futuro.
E isso tem a ver com o lugar de potência de cada marca, que é o cruzamento das potências essenciais que um negócio tem, as verdades que estão lá desde o início, a razão de existir daquela companhia e sua relação com o que o mundo precisa.
Na minha cabeça, o objetivo central do marketing é garantir a construção de pontes entre as marcas e as pessoas, os stakeholders, para que as empresas possam contar suas histórias, falar dos seus diferenciais e mostrar a que vieram. Em associação com o Grupo Dreamers (do qual fazem parte a Artplan e o Rock in Rio), Mandalah e Tátil, nós desenvolvemos o conceito do marketing de valor compartilhado, que parte da premissa de que as marcas devem construir uma nova relação com a sociedade e com o meio, entregando o melhor de si para cada grupo de stakeholders.
Fred Gelli: É o lugar onde ela gera valor para o ecossistema do qual faz parte. Então, quando aquele CEO foi pessoalmente conversar com os vários agricultores que estavam rompidos com a indústria em que ele trabalha, para reconquistá-los, essa empresa ocupou esse lugar de potência.
Não dá para imaginar que um negócio possa continuar próspero se ele está com uma relação absolutamente comprometida com o entorno. Não dá para imaginar que um carvalho vai existir no meio de uma floresta se quem estiver nos arredores estiver contra ele, sabe assim? A relação é simbiótica, você tem trocas acontecendo o tempo todo e o mesmo serve para um ecossistema de negócios.
Fred Gelli: Em 2018, o investimento em publicidade no Brasil chegou a R$ 16,5 bilhões, segundo o Conselho Executivo das Normas-Padrão e a ideia é destinar um pedaço dessa dinheirama, que as marcas usam para se promover, para que elas continuem se promovendo, mas gerando valor para a sociedade.
As bicicletas do Itaú são um exemplo de como fazer isso. O banco subsidiar aquelas bicicletas para as pessoas transitarem pela cidade gerou um ganho enorme para o Itaú. Porque as pessoas passam a olhar para aquela marca com muito mais simpatia do que se ela colocasse um outdoor escrito: O Itaú é o melhor banco para você.
Na 12358, nós estamos participando da celebração dos 120 anos da Gerdau, que fala essencialmente de construção civil. E quais são as dores do mundo que demandam essa competência? O Brasil tem uma seríssima, que são as comunidades, as favelas. E, pensando no marketing de valor compartilhado, a Gerdau vai celebrar o passado, que a trouxe até aqui, e se comprometer com o futuro reformando e urbanizando comunidades no Brasil inteiro, começando pelo Estado de São Paulo. Isso garante relevância para a marca e ainda pode se tornar uma nova frente de negócios para a companhia.
No caso do agronegócio, obviamente, se tem uma coisa de que o Brasil está padecendo no momento é de insegurança alimentar. Se você pensar no desperdício que tem no transporte, já vem à minha cabeça um milhão de coisas...
Na campanha da Gerdau, a 12358 fez aparecer entre raízes de uma árvore o logo da companhia (Foto: Reprodução)
Fred Gelli: A metáfora que a gente usa tem uma explicação biomimética sim. Quando você olha uma flor se abrindo, aquilo é uma peça de marketing incomparavelmente mais eficiente do que qualquer outra que nós seres humanos tivemos a capacidade de inventar. Cada flor é desenhada para atrair audiências específicas e gerar valor adicional para elas.
Uma flor polinizada por beija-flor vai ser super colorida, mas não precisa ter cheiro, porque os pássaros não sentem cheiro. O beija-flor não sente cheiro nenhum. Então, a natureza não vai gastar um grama de energia para investir num atributo que o cliente não valoriza. Já uma flor polinizada por insetos parte de outra conversa. Ela não precisa investir em cor, porque isso gasta muita energia, mas será super aromática, porque é isso que os insetos valorizam.
A natureza é criadora de mega estratégias de marketing, que geram um retorno sobre o investimento claro e têm um objetivo de negócio complexo: garantir a perpetuação daquela espécie. Prova disso é que, em troca da audiência dos pássaros ou dos insetos, a flor, além de entregar o pólen, que seus visitantes levam para outras flores, também entrega o néctar. E aí a abelha faz o mel, o pássaro se alimenta. O marketing de valor compartilhado mimetiza essa lógica.
Fred Gelli: Todo o esforço criativo e estratégico na minha atuação como profissional, tanto na Tátil, como nas outras empresas das quais eu sou sócio, mas também na minha atuação como palestrante internacional, TEDs e etc, dentro desse mundo de inovação e sustentabilidade, eu sempre tento trazer para o lado positivo do desafio.
Eu entendo que já estamos e seguiremos pagando um preço alto pelos equívocos que a gente cometeu até aqui, mas acredito que ainda há espaço para uma reinvenção, um redesenho de forças e vejo isso como uma grande oportunidade de negócios. Nossos negócios do futuro vão olhar para a natureza e trazer o desafio evolutivo para o centro das reflexões.